Por: Karina Gomes Andrade.
Em junho de 2017, o STF julgou a questão de ordem no RE 966.177/RS, que versava sobre o alcance da suspensão dos processos pendentes como decorrência do reconhecimento da repercussão geral, nos termos fixados pelo art. 1.035, §5º do CPC/15[1].
Naquela ocasião, o Plenário da Corte Suprema entendeu que “a suspensão do processamento prevista no §5º do art. 1.035 do CPC não é consequência automática e necessária do reconhecimento da repercussão geral realizada com fulcro no caput do mesmo dispositivo, sendo da discricionariedade do relator do recurso determiná-la ou modulá-la”.
Esse julgamento pôs fim a uma ampla discussão doutrinária e jurisprudencial acerca do caráter autorizativo ou impositivo da suspensão dos processos pendentes nas instâncias ordinárias em face do reconhecimento da repercussão geral.
Neste artigo, pretendemos explorar a aplicabilidade desse entendimento às prescrições contidas no CPC/15, que tratam da suspensão dos processos pendentes em função da decisão de afetação de recursos para julgamento sob a sistemática repetitiva, em especial ao disposto art. 1.037, II da lei processual, analisando, ainda, a compatibilidade do entendimento do STF com o sistema de respeito aos precedentes recém inaugurada.
Decerto, o CPC/15 foi concebido em um contexto de aproximação do direito processual brasileiro, tradicionalmente filiado ao Civil Law, aos fundamentos do Common Law, tendo como ponto de destaque a valorização do precedente.
Esse movimento teve como pano de fundo motivações diversas tais como o congestionamento do Poder Judiciário[2], a coexistência de decisões judiciais contraditórias acerca da mesma norma, a oscilação da jurisprudência, a falta de qualidade dos julgados, circunstâncias que implicam, em última análise, na falta de segurança jurídica e na quebra da isonomia.
A direção seguida pelo CPC/15, nesse cenário, foi no sentido de preservar os institutos que já existiam no CPC/73, aprimorando-os, e de criar novos instrumentos voltados à uniformização e estabilização da jurisprudência.
Merece destaque, neste aspecto, a eficácia vinculante imediata atribuída pelo art. 927 do CPC/15 às súmulas e aos julgados aos quais conferiu o status de precedente.
Voltaremos a nossa atenção para os acórdãos decorrentes do julgamento de recursos repetitivos posto que relacionados ao objeto da presente análise.
Neste aspecto, os artigos 1.039 e 1040 do CPC/15 são categóricos quanto à obrigatoriedade dos juízes e tribunais aplicarem a tese firmada pelo tribunal superior quando do julgamento do recurso paradigmático.
Essa vinculação imediata viabiliza a consecução de um dos principais objetivos do CPC/15 que é a uniformização jurisprudencial, mas não assegura a formação de precedentes qualificados.
É nesse contexto que se insere a necessidade de aprimoramento da técnica do julgamento de recursos repetitivos já contida no CPC/73, a fim de prever critérios objetivos para a escolha do recurso paradigmático, garantindo que contenham argumentação abrangente (art. 1.036, §6º), bem como a necessidade de o relator identificar com precisão a questão a ser submetida a julgamento (art. 1037, I).
Ainda dentro da ideia da uniformização da jurisprudência e da otimização do processo que permeiam as disposições do CPC/15, o seu art. 1037, II atribuiu ao relator do recurso afetado para julgamento sob a sistemática repetitiva nos tribunais superiores o dever de suspender todos os processos individuais ou coletivos que aguardam a solução da controvérsia no território nacional.
Neste último aspecto, o CPC/15 foi bastante inovador, posto que ampliou a abrangência da suspensão decorrente da afetação, que na sistemática anterior só atingia os recursos especiais e extraordinários pendentes de julgamento, para alcançar todos os processos independentemente da instância em que estejam tramitando.
Essa inovação causou grande preocupação na comunidade jurídica especialmente por conta da revogação, pela Lei 13.256/16, do §5º do art. 1.037 do CPC/15, que estabelecia a cessação automática da suspensão decorrente da decisão de afetação se, após o prazo de um ano prorrogável por mais um, o recurso afetado não fosse apreciado pelo tribunal superior.
Assim, independentemente do tempo que os tribunais superiores demorem para apreciar o recurso paradigmático, a suspensão dos processos pendentes nas instâncias ordinárias deve ser mantida.
A aplicação da norma nestes moldes foi alvo de questionamentos especialmente no que se refere a demandas que envolvem direitos fundamentais, que ficariam sem tutela até que os tribunais superiores julgassem as demandas repetitivas, caracterizando violação ao acesso à justiça, ao princípio da efetividade e da duração razoável do processo (art. 5º, XXXV e LXXVIII da CF/88).
Iniciaram-se, então, amplos debates quanto ao alcance da norma contida no art. 1.037, II do CPC/15 à semelhança do que ocorreu com o disposto no art. 1.035, §5º, que culminou com o julgamento do Plenário do STF mencionado no início desse artigo. Estaríamos diante de uma norma que implica na automática suspensão dos processos em tramitação que versem sobre a matéria afetada para julgamento sob a sistemática repetitiva ou de simples autorização para que o relator do processo no tribunal superior avalie, discricionariamente, se cabe ou não a suspensão?
Do ponto de vista literal, não há dúvidas de que a interpretação do art. 1.037, II[3] conduz à obrigatoriedade da suspensão de todos os processos pendentes.
O legislador não utilizou qualquer expressão que indique faculdade como, por exemplo, “poderá”. Ao contrário, utilizou expressão impositiva, que traduz um dever atribuído ao relator.
Analisando a questão sob o aspecto teleológico a conclusão a que se chega não é diferente. A simples leitura da Exposição de Motivos do CPC/15[4] evidencia com clareza que a ideia da Comissão de Juristas era mesmo de que todos os processos, independentemente da instância de tramitação, ficassem suspensos como decorrência da decisão de afetação da questão neles versada para julgamento sob a sistemática repetitiva.
O suposto potencial lesivo dessa suspensão automática, contudo, deu origem a uma proposta de interpretação do dispositivo legal em referência conforme a Constituição – restando preservados o acesso à justiça, ao princípio da efetividade e da duração razoável do processo – atribuindo-lhe o caráter de recomendação, o que coincide com a orientação do STF, no RE 966.177/RS, no que tange à suspensão decorrente do reconhecimento de repercussão geral.
É possível dizer que a manifestação do Plenário do STF no julgamento do já mencionado RE encerra a discussão ora tratada?
A resposta parece ser positiva. Embora o STF não tenha discutido nessa assentada o alcance da suspensão dos processos decorrentes da afetação de recursos para julgamento sob a sistemática repetitiva, a tendência é que o quanto ali decidido seja aplicado também à hipótese prevista no art. 1037, II do CPC.
Isso porque ambos os casos de suspensão ora tratados estão inseridos no contexto de técnicas de valorização do precedente como instrumento de uniformização de jurisprudência e filtro de acesso aos tribunais superiores, havendo absoluta identidade entre a redação do art. 1.035, §5º e do art. 1.037, II, ambos do CPC, quando tratam da suspensão dos processos que versam, respectivamente, sobre questão com repercussão geral reconhecida e afetadas para julgamento sob a sistemática repetitiva.
Nos parece, contudo, que essa interpretação implica em um indesejável retrocesso à sistemática do CPC/73 na qual a suspensão dos feitos que versam sobre questões submetidas a julgamento na sistemática repetitiva só atinge recursos especiais e extraordinários pendentes de julgamento, frustrando todo o esforço legislativo no sentido de otimizar a marcha processual, tornando-a mais eficiente.
Deixando de lado possíveis questionamentos quanto à constitucionalidade dos dispositivos legais em apreço, os argumentos que militam em favor da discricionariedade da suspensão não parecem muito convincentes.
No que se refere aos processos que envolvem direitos fundamentais, a suspensão do processo não impede a concessão de tutela provisória de urgência[5] desde que estejam presentes e demonstrados os requisitos legais consubstanciados no fumus boni iuris e no periculum in mora.
A alegação de que a suspensão dos feitos ofende o princípio da razoável duração do processo também é frágil. Por certo, independentemente de haver ou não a suspensão do feito nas instâncias ordinárias, a realidade é que, pela sistemática estabelecida no CPC/15, o desfecho do processo que verse sobre questão afetada estará necessariamente vinculada ao quanto decidido pelos tribunais superiores quando do julgamento do recurso representativo da controvérsia, de modo que se a suspensão não ocorrer nas instâncias ordinárias, será medida inevitável quando da oposição de recursos dirigidos aos tribunais superiores.
Por outro lado, impor aos juízes e aos tribunais ordinários a apreciação de milhares de processos, cujos desfechos estão necessariamente vinculados à decisão do STJ ou do STF pendente é medida contraproducente que vai de encontro a tudo o que é preconizado pelo CPC/15. Ao invés de se dedicarem ao julgamento desses processos, com grande possibilidade de proferirem decisões díspares passíveis de reforma após a fixação do padrão decisório, os julgadores de primeira instância e os tribunais regionais poderiam estar julgando casos não submetidos à sistemática repetitiva, reduzindo o estoque de processos que é alvo de tantas e reiteradas críticas pela comunidade jurídica e pela sociedade.
Tudo isso não quer dizer que não existam situações excepcionais nas quais a suspensão do processo pendente nas instâncias ordinárias possa efetivamente se tornar lesiva como, por exemplo, quando há necessidade de produção de prova que possa ser inviabilizada pelo transcurso do tempo. Daí porque não há razão para negar a possibilidade de o relator deixar de suspender o curso dos processos pendentes que versem sobre questões afetadas.
A questão que se coloca, no entanto, é que, seguindo as diretrizes do CPC/15, a regra deveria ser a suspensão dos feitos e a negativa de suspensão deveria ser medida excepcional pautada em argumentação relevante.
Feitas essas considerações, entendemos que a posição firmada pelo STF no julgamento do RE 966.177/RS repercute no alcance do art. 1.037, II do CPC/15, de forma que a suspensão dos feitos que versem sobre questão afetada para julgamento sob a sistemática repetitiva dependerá do livre convencimento do relator nos tribunais superiores.
Esta interpretação, ao nosso ver, contraria o espírito do CPC/15, não só no que se refere à uniformização da jurisprudência, mas também à incansável busca pelo gerenciamento do passivo de casos a serem julgados pelo Judiciário.
A verdade é que o uso incipiente do sistema de precedentes no Brasil gera muita insegurança por parte da comunidade jurídica, o que impede a sua implementação tal como idealizado pelo CPC/15. Talvez seja necessário um tempo de amadurecimento para que se possa enxergar o microssistema de repetitivos como um instrumento virtuoso e funcional na busca pela segurança jurídica e isonomia.
Texto também disponível em: Jota
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